terça-feira, 24 de maio de 2016

O livro mais triste de Tolkien – Resenha de Os Filhos de Húrin



Quem se depara com a grandiosidade de obras como O Senhor dos Anéis, muitas vezes releva que a Terra Média é muito mais antiga que a jornada de Frodo para destruir o anel. Tanto na mitologia, como em sua própria criação. No primeiro caso, os tolkienianos de plantão já conhecem bem a profundidade da antologia de contos de fada do todo poderoso Mister Tolkien. Em obras como O Silmarillion e Contos Inacabados (ambos publicados pela Martins Fontes no Brasil), o melhor amigo de C. S. Lewis já apresentava personagens e histórias fantásticas muito anteriores aos acontecimentos narrados em sua obra mais famosa. Histórias de séculos e até milênios antes, carregadas de elementos fantásticos, heroísmo, personagens grandiosos e até batalhas cinematográficas. É tão rico esse acervo, que muitas dessas histórias menores aparecem até mesmo citadas como lendas no próprio O Senhor dos Anéis. E é este o caso de Os Filhos de Húrin (Martins Fontes, 2009).
Na trama voltamos mil anos antes do ressurgimento de Sauron, ao tempo do primeiro senhor do escuro, Morgoth. Nessa época, onde o mundo ainda era jovem (ou um pouco menos velhinho), os deuses eram lembrados com muita mais proximidade, e os próprios elfos assumiam uma imagem mais divina para os homens (o próprio Morgoth é um elfo que fazia parte dos deuses antigos e fora expulso). Assim, a grandiosidade dos feitos e dos homens que lhes praticavam era assombrosa. E entre esses homens titãs, Húrin se sobressaia. E tão feroz era, tão obstinado, que seu espírito inabalável atraiu a ira do próprio Morgoth, que após captura-lo e tortura-lo, decide prende-lo no ponto mais alto de uma torre, onde não poderia morrer e seria obrigado a assistir a trajetória de seus descendentes, a quem amaldiçoou e jurou destruir. E assim começa a breve biografia dos irmãos Túrin e Nienor, filhos de Húrin e Morwen, senhores dos homens do norte.
(Será que precisa de legenda dizendo quem é esse cara?)
Sem o pai, e sempre fugindo para salvar sua vida, Túrin é criado pelos elfos, e se torna um homem tão forte, bonito e imponente que ganha o apelido de homem-elfo, sendo facilmente confundido com seus protetores. Mas a maldição de Morgoth destrói tudo que Túrin ama e leva a desgraça para todos ao seu redor, assim, toda a vida do orgulhoso e colérico jovem é guiada por sua fuga e pela perseguição de um destino terrível. E entre o isolamento, várias guerras e um dragão, Túrin ainda terá que enfrentar a mais terrível das maldições: um amor trágico (sem spoilers).
Quanto a obra em si, a primeira coisa que tenho a dizer é que é até agora o livro que eu mais gostei de Tolkien (apesar que eu só li ele e O Hobbit; não li O Senhor dos Anéis porque a trilogia do cinema é de longe a minha favorita, gosto tanto que tenho medo de ler os livros e passar a não gostar dos filmes). O texto também foi escrito muito antes de Tolkien sonhar com o bromance entre Frodo e Sam, sendo talvez a primeira (com certeza é uma das primeiras) aventura do autor pela Terra Média, começando a ser escrita quando ele ainda era um jovem soldado na guerra. É importante frisar que a obra finalizada que chegou até nós foi “organizada” por Christopher Tolkien, o filho do bom velhinho. Isso porque Tolkien começou a escrever a história em forma de poema narrativo (isso mesmo, em verso e com rimas!), mas nunca concluiu, passando para o que seria contos (ou apontamentos para contos) dessa história. Assim, T. Junior apenas organizou esses contos (ou apontamentos de contos) de forma a criar uma narrativa mais longa (que podemos considerar um romance curto ou uma novela longa), provavelmente mexendo no texto apenas nos pontos em que se fazia necessário uma concordância narrativa. (Logo, não é um Tolkien Pai puro). 
Mas, por outro lado, isso teve um efeito bem positivo. O primeiro dele é que resultou em uma narrativa leve, rápida de ler, com uma linguagem poética, muito diferente dá densa descrição da floresta em A Sociedade do Anel (único livro da trilogia que comecei a ler). Isso se deve ao fato de termos em mãos a junção de três contos, não um romance, gênero que exige uma brevidade maior. Assim, nós temos acontecimentos que seriam narrados em um capitulo inteiro em O Senhor dos Anéis, contados em um paragrafo. A outra característica é o tom que isso criou. A atmosfera extremamente poética da histórica, com uma aura sombria e melancólica pairando sobre cada momento da vida dos herdeiros de Húrin.
Hurin aprisionado 
Além disso, o texto lembra em vários momentos tragédias gregas, com cenas de muita violência, incesto e um momento catártico profundo e inesquecível. Mas, acima de tudo, lembra, principalmente em tom, os poemas épicos do começo da literatura inglesa e da literatura nórdica europeia. Estou falando de poemas como Beowulf. Poemas que possuem um clima trágico desde o inicio, onde reis decidem enfrentar o seu destino e jogar com os deuses, em nome de uma grandiosidade que atravessaria as eras da terra. Isso não é coincidência, levando em conta que Tolkien concebeu essa história originalmente como um poema, e dá ao texto um ar muito mais solene e grandioso.
E para concluir essa resenha que planejei para ser curta e acabou virando um filho gordo (nada mais adequado para um pai gordo), digo apenas que: se prepare para ficar triste após ler esse livro. Existe uma boa razão para ele ser considerado a obra mais sombria de Tolkien. E como todo belo poema dramático, com pretensões a grandiosidade, essa história apaixonante e instigante, vai te levar por caminho que você não imaginava encontrar na Terra Média. 


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Um Romance Russo – Resenha de Criança 44 de Tom Rob Smith



Particularmente eu sou muito atraído por ditaduras. Principalmente a Soviética e o período que compete do fim da Segunda Guerra até os anos 80. E como um bom fã do David Fincher, também fico alucinado em uma boa história de serial killer. Logo, Criança 44 (Record, 2013), do britânico Tom Rob Smith, me chamou muita a atenção, mais do que isso, foi um dos livros que mais me criou expectativa. E então saiu a notícia do filme, com um trailer que me fez pirar – eu tinha acabado de ver Mad Max e o Tom Hardy meio que ganhou meu respeito e tal – aí, ler o livro, antes de ver o filme, se tornou assunto de extrema importância. Mas, infelizmente, tanta expectativa não valeu a pena.
Em primeiro lugar é importante lembrar que esse foi o primeiro livro do autor, que é inclusive bem novinho. Em segundo lugar, e isso me ocorreu depois, é impossível evitar a sensação de que se está lendo um livro que se passa na URSS, mas a visão do mundo ao redor é totalmente britânica. Isso fica claro pela visão política implícita no livro e o certo... extremismo com que ele pinta a mentalidade russa. De resto, existe uma ingenuidade, própria dos autores iniciantes no gênero, que acabam forçando a realidade: como a convicção que bastava alguém dizer que se opunha ao governo para receber ajuda incondicional de todos estranhos pelo caminho. Em todo caso, o pior não é isso, o pior é que sem querer o autor criou um enredo (ok, desconfio que foi de propósito) extremamente complexo, que poderia ter transformado Criança 44 no melhor romance de sua geração, mas ele insistiu em escolher seguir com o clichê.
Tom Rob Smith
A história conta a queda de um dos agentes do governo soviético de maior prestigio. Herói de guerra e perseguidor implacável dos traidores da URSS, Liev Demidov começa seu declínio quando recebe a missão de encerrar os rumores que um subalterno estava espalhando após ter tido seu filho supostamente assassinado (o que ia contra os ideais soviéticos, pois na Rússia não existiam crimes). Obedecendo ordens, Liev ignora todos os indícios, e cegamente obriga a família da criança morta a silenciar o assunto. Enquanto isso, ele recebe uma missão ainda mais terrível: investigar a própria mulher. E quando ele se recusa a delata-la como traidora da nação, ambos são exilados no interior do país. Mas as coisas ficam ainda mais complexas quando Liev encontra nesse lugar um segundo corpo, de uma jovem, morta com o mesmo modus operante do filho de seu subordinado. E destes dois assassinatos Liev descobre uma fila de corpos deixada por um serial killer. O que já seria terrível, se na contramão dos acontecimentos o governo não estivesse tentado acobertar os crimes, transformando o já rebaixado e exilado Liev, num criminoso procurado pelo país, enquanto apenas ele está disposto a pegar o perigoso assassino.
O começo da história é fantástico. Uma história onde um homem precisa investigar sua própria mulher e começa a descobrir a verdade sobre seu casamento e sua pátria, num contexto de paranoia, perseguição e claustrofobia (uma vez que na URSS a liberdade individual e privada não existia), poderia ter transformado o livro em uma obra incrível. Eu realmente achei que esse ia ser o foco. Mas quando esse quadro complexo foi se deslocando para o caso do serial killer, e o conflito do casal meio que se resolveu naturalmente, igual a qualquer filme hollywoodiano, a história perdeu toda força e inovação que tinha, transformando o contexto humano extremamente complexo em só mais um folhetim genérico cuja ação se passa num local exótico. E ainda existe uma ligação entre Liev e o assassino que fica óbvia na metade do livro, destruindo a reviravolta que muitos esperavam e que é muito forçada.
Mas o livro ainda consegue te prender e você vai querer saber o final, já que tudo está contra Liev e sua esposa. É uma leitura divertida, que vai consumir dois ou três dias de seu tempo, que você logo vai esquecer, mas vai te divertir. E eu ainda fiquei mais decepcionado ainda, porque descobri que o filme não vai ser transmitido pelos cinemas da minha cidade e da região... Em todo caso, o livro ainda é melhor que os romances do Dan Brown.  
Cena do filme

Em contra partida, é preciso dizer que o filme consegue ser melhor que o livro (apesar da tradução ridícula do titulo para Crimes Ocultos). Eles tiram algo que na minha opinião foi muito forçado no romance e conseguem dar uma abordagem mais natural. E o papel da mulher de Liev no filme também ganha destaque, tanto que nas cenas de ação a impressão que passa é que quem está batendo nos inimigos é ela, não Liev. As interpretações dos personagens são boas e a ambientação do filme é excelente. Existe sim alguns problemas de edição e direção, mas no geral é um bom thriller. Apesar disso, o filme também não é grande coisa. Mas vale a pena conhecer livro e filme pelo contexto histórico. E mesmo que eu não tenha ficado animado para ler as continuações (o que eu farei de qualquer forma, afinal eu comprei a trilogia completa), vou dar uma segunda chance para Liev, afinal a premissa continua sendo muito boa, resta esperar que autor também melhore.

terça-feira, 26 de maio de 2015

Além do Bem e do Mal – Resenha de Reparação – Ian McEwan



Começar essa resenha foi difícil, até para escolher um título, porque todos os realmente pertinentes que consegui pensar (espremendo muito as ideias) me pareciam, de certa forma, spoilers. Isso, simplesmente, porque o livro Reparação (Companhia das Letras. 2008), do britânico Ian McEwan, é um daqueles trabalhos que está muito além do mero conflito do enredo, mas a sua substância final, ou seja, a estrutura narrativa como um todo, é que torna essa obra algo excepcional, o que torna muito difícil tocar nesses pontos fantásticos sem levantar algumas informações que podem deixar alguns ranzinzas inconformados. E abro um parêntese para dizer que esse foi um dos melhores livros que já li na vida e até agora o melhor de 2015.
Ian McEwan
Em todo caso, essa completude do livro isso não significa que o enredo por si só não seja muito bom. A história, basicamente, é uma crônica familiar, de uma família inglesa tradicional (e por tradicional leia-se rica), em que estão presentes todos os conflitos de classe que afloravam na Europa dos anos 30. E não só pela estrutura social: patrões e empregados; mas os próprios personagens encarnam, com suas peculiaridades psicológicas, representações dessa sociedade estratificada: a mulher que começa a ganhar seu espaço num mundo machista que ainda não sabe o que fazer com essa nova mulher, o pai patriarcal, ausente, que paira como uma autoridade central, o homem de classe inferior que começa a ascender socialmente, a mãe que é um eco de um passado conservador, marcado principalmente pela lei da aparência e pela nulidade, o filho fútil, amante da vida fácil, sem ambições maiores e, talvez o elemento mais importante da trama, a jovem em transição, na busca por autoconhecimento, enquanto sua existência fervilha, como uma época marcada por profundos abalos que transformariam o mundo. E essa jovem, talvez, a protagonista da obra.
Briony Tallis é uma menina de 13 anos (13 anos nessa época é o mesmo que infância), com uma forte atração pela palavra escrita e um desejo de se tornar escritora. É desse desejo que parte sua compreensão do mundo e é motivado por ele que ela começa a se transformar. Certo dia, ela testemunha sua irmã e o filho da empregada em uma cena inusitada na fonte da casa (é, a casa deles era pobrinha assim), quando a irmã mais velha se desnuda e entra apenas com a roupa de baixo, na frente do rapaz, na fonte, enquanto uma cena de conflito, que a jovem Briony não entendia, se desencadeava. A partir desse momento ela tenta juntar as peças espalhadas por sua cabeça e acaba concluindo que o filho da empregada, Robbie, é algum tipo de vilão, o que a leva, mesmo sem querer, a contar uma mentira, cujo resultado é separa Robbie de sua irmã mais velha e enviá-lo para a prisão, ainda que inocente.
O restante do livro irá tratar das consequências não imediatas desse seu ato e as tentativas da agora com 18 anos Briony Tallis de reparar o mal ocorrido, tendo como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial. O autor ainda tenta dar ao romance um ar de história de amor, mas ele desconstrói essa ideia no epílogo com muita força.
Poster do filme
A narrativa é densa e se desdobra sobre si mesma, ou seja, usando um discurso indireto livre (quase não se encontram falas), onde um narrador em terceira pessoa (na maior parte do livro) quase reproduz o fluxo de pensamento dos personagens. Além disso, é importante destacar, a ação que o livro narra acontece mais em função de explicar o psicológico do personagem, que em função do enredo em si, o que faz com que Reparação seja, antes de mais nada, um estudo psicológico humano, do qual se conclui que estamos todos além do bem e do mal, sendo movidos por uma busca cujo sentido escapa, em algum momento, de todos nós. 
Todos os personagens são desprovidos de maniqueísmo, ao ponto que odiar ou amar completamente qualquer um deles é impossível. Essa sensação de que o mais importante é o psicológico é reforçada pela estrutura do livro, dividida em três partes, sendo que a primeira parte, aquela que se refere a infância e ao crime de Briony, é mais longa, justamente porque é a que mais explica e situa os personagens (um recurso que nosso Machado adorava usar), por isso a narrativa é mais lenta também. No final do livro, você irá notar que muitas coisas aparentemente aleatórias, como uma peça escrita pela protagonista lá na infância, possui uma ligação direta com a história, o que dá ao livro aquela sensação de obra bem acabada, elaborada nos mínimos detalhes para ser uma obra-prima. 
O ponto forte da obra, no entanto, é sua metalinguagem, que mais que construir um complexo panorama de uma Europa em guerra, trata de questões de arte e estética, principalmente do ponto de vista literário, com um final que vai explodir a cabeça do leitor
. E desde já fica o aviso: McEwan é um cara cruel, maligno de verdade, que vai esperar até a penúltima página do livro para te dar um chute no saco com muita força e te fazer chorar e, de quebra, roubar sua esperança. Mas fora isso, é um livro indispensável para amantes de uma boa história e da arte em geral. É um livro para se apaixonar por ele e do qual você nunca via se livrar completamente.




Não precisava haver uma moral. (...) Não era só o mal e as tramoias que tornavam as pessoas infelizes; era a confusão, eram os mal-entendidos; acima de tudo, era a incapacidade de apreender a verdade simples de que as outras pessoas são tão reais quanto nós (...) Essa era a única moral que uma história precisava ter.
            – McEwan, Ian. Reparação. São Paulo: Companhia das Letras, 2008; 55.

domingo, 22 de março de 2015

Saramago e a distopia do presente – Resenha de A Caverna



O próprio José Saramago sempre se reconheceu como um ensaísta que seguiu pelo caminho errado, e em suas andanças pelas palavras acabou se tornando um romancista, e, ironicamente (ou não), dos bons. O comitê do Nobel que o diga. Em todo caso, seu espirito ensaístico fez com que seu olhar sobre a história – e nos últimos anos principalmente sobre a história recente, fosse sempre crítico, ácido, minucioso e, muito frequentemente, filosófico. Disso nasceu dois traços fundamentais de sua obra, o primeiro, a natureza nem um pouco fofa de seus escritos, motivo pelo qual o autor é conhecido em Portugal, muito merecidamente, como “sal amargo” (esses trocadilhos portugueses...); e a segunda característica, muito mais relevante, que é a que concerne ao seu estilo, que qualquer leitor de primeira viagem saramaguiano sabe do que estou falando: a estrutura propriamente dita de sua prosa, com uma pontuação e paragrafação peculiar, além da construção do narrador, sempre o mesmo, sempre uma projeção da criticidade do próprio Saramago. Uma prosa, que como o próprio autor explica, nasceu de seus pensamentos para ser reproduzida em voz alta. E é justamente nesses termos que encontramos a obra que talvez seja a mais contemporânea do autor, A Caverna (Companhia das Letras, 2002).
Densa, pesada, irônica, simbólica, ácida, são alguns dos adjetivos que se pode atribuir a obra. Entretanto, se você não é um leitor de primeira viagem na linguagem saramaguiana, você irá perceber que é um livro que flui relativamente fácil comparado com outras obras do autor. Em parte isso se deve a própria história, que é menos filosofada e mais contada. Além de ser muito mais atual.
José Saramago
Saramago em A Caverna, faz uma recontagem do mito da caverna que aparece na literatura pela primeira vez na boca de Sócrates e através da pena de Platão, lá na Grécia Antiga. No mito original, temos homens acorrentados em uma caverna, sem conseguir sair e que contemplam sombras na parede a sua frente, as quais tomavam por realidade. Na versão de Saramago, entretanto, o homem está livre e, que ironia, quer entrar na caverna. Essa metáfora é aplicada de uma forma bem kafkiana para retratar o consumismo e o desejo moderno de cada vez mais se tornar dependente de coisas para se tornar “uma pessoa real”, como se a felicidade e a vida plena fossem frutos de bens materiais e muitas vezes artificiais. Esse conflito é encarnado pela imagem de um mega centro comercial, que controla a economia de toda uma região no livro. O personagem principal, um simples oleiro, se descobre no momento mais negro de sua vida quando o centro decide não comprar mais seus produtos, pois o barro está sendo substituído pelo plástico. E enquanto tenta se adaptar para não ser esmagado (algo que o capitalismo adora fazer com tudo o que julga obsoleto e fora de moda), o oleiro irá enfrentar todas as questões existenciais de nosso tempo e fazer uma profunda análise da pós-modernidade. (Ler A Caverna à luz de Bauman, por exemplo, é uma experiência intelectual incrível).
Esse romance que possui muitos elementos distópicos é encarado pelo autor como uma alegoria do mundo moderno, um mundo onde os laços humanos tem sido podados em função da coisificação planetária e cada vez mais a indiferença e a brevidade se tornam tendências universas.  Capaz de arrancar lágrimas (quem não ficou indignado com o destino de Achado?), de levar a reflexão profunda (acredite, é impossível sair ileso desse romance), e com uma terrível tendência para se tornar cada vez mais atual, A Caverna é talvez o melhor romance da segunda faze do autor e foi uma das melhores leituras que eu tive o prazer de realizar em 2014. Ler A Caverna é ler o mundo onde estamos, indispensável para qualquer leitor crítico. 



quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Os melhores e os piores livros de 2014



Ano novo, vida nova, clichê velho, tanto quanto o velho clichê das promessas de ano novo, mas é meio por ai que vamos abrir esse 2015 e nem é tanto por falta de ideias. O blog andou meio parado nos últimos seis meses, e por isso o primeiro grande ato do ano vai ser reviver isso aqui, tirar as teias, espantar as moscas e raspar uns pelos, mas é melhor não explicar isso. Em todo caso, garantir um ano com muito mais conteúdo vai ser meu objetivo em 2015 (eis nossa promessa). E, como não deixa de ser nem no mundo da literatura, é hora de fazer o balanço, dos melhores e piores livros lidos nesse falecido 2014 (e que já foi BEM tarde, na minha opinião). Infelizmente, para mim, não foi um ano de grande descobertas literárias, mas isso provavelmente foi reflexo do meu desleixo como leitor esse ano. 2014 foi o ano em que menos li (desde que comecei a fazer contagem de livros lidos), e sim, eu me envergonho disso! Entretanto (outra promessa de ano novo aqui! – quantos parênteses, meu Deus!), nesse ano eu vou virar a mesa e bater meu recorde. E enquanto isso não ocorre, eu preparei um balanço do que mais me marcou e do que menos foi relevante, apesar de não ter tido nenhum livro que eu tenha detestado ou desgostado muito, tudo foi um pouquinho bom pelo menos. Mas vamos começar com os melhores:

Melhores livros de 2014:


01-  A Caverna – José Saramago
Eu gosto MUITO do Saramago desde que eu li (há uns dois, três anos) o Ensaio Sobre Cegueira, e desde então eu não havia lido mais nada. Esse ano eu compensei, e li As Intermitências da Morte, que vi muitos blogs falando que era maravilhoso, e tal, o que, aproposito, é verdade absoluta. O livro tem uma construção maravilhosa, que já começa (estou falando literalmente da primeira palavra) de um jeito curioso e termina de uma forma redondinha. Entretanto, senti que faltou o mesmo “óóóó” do Ensaio Sobre a Cegueira. Felizmente, li também A Caverna, por causa da faculdade, e acabou sendo uma das melhores leituras não só do ano, como da minha vida. O livro trata da representação do mito da caverna que Platão escreveu dois mil anos atrás adaptado para o presente. Nessa recontagem do mito, o homem moderno não está preso na caverna, ele quer fugir para a caverna, o que é representado por um centro comercial que encarna simbolicamente o consumismo. É um livro político e humanista ao mesmo tempo, que trata das relações humanas em todos os níveis: pessoais, interpessoais, familiares, sociais, etc. E te faz ter muitas reflexões. Mas vou falar melhor sobre ele em uma resenha em breve.




02-  Budapeste – Chico Buarque
Eu precisava ler esse livro! Para tentar redimir o Chico Buarque para mim. Eu havia lido Benjamim há algum tempo (ano retrasado eu acho) e não gostei. Achei interessante, mas não chegava nem de perto no que eu esperava. Budapeste, por outro lado, me ganhou já nas primeiras páginas. Primeiro porque é sempre bom ler um autor brasileiro contemporâneo que não trate nem de violência, nem de triângulos amorosos, nem fale em prosa poética. Segundo porque o romance é leve em sua linguagem e denso em sua profundidade, mergulhando no poder das palavras e na significação das palavras sobre quem as profere, no caso o autor do livro, o que cria um efeito metalinguístico incrivelmente poético (entendedores entenderão). Em todo caso, também foi uma leitura que valeu pelo ano e me fez querer ler o mais rápido possível mais coisas do Chico (principalmente depois das últimas eleições). Além disso, na minha humilde opinião, eu acho que a literatura brasileira precisa de autores tão diferentes assim, e com urgência.



03-  Homem Comum – Philip Roth
Outro livro que entrou para as melhores leituras da minha vida, O Homem Comum foi inclusive eleito por uma revista americana como um dos melhores livros da primeira década do século XXI, em níveis mundiais (um poder, claro, que só os americanos acham que têm, mas enfim, o livro consta na mesma lista que vários de livros de autores de todas as nacionalidades). O romance faz uma análise da morte e, mais propriamente, da fim da vida, mas não vou comentar muito porque já tem resenha no blog. Em todo caso, foi meu segundo livro do Philip Roth, e pela segunda vez o cara não me decepcionou.



04-  A Espera De Um Milagre – Stephen King
Esse é um daqueles livros que a gente se pergunta: “por que demorei tanto para ler?”. Eu queria tanto ler que nem tinha assistido ao filme, que é super cotado e amado por quem viu (e provavelmente por isso não gostei). Chorei lágrimas até embaçar a visão e ter que parar de ler para enxugar, e fiquei fascinado com esse Stephen King que eu não conhecia, porque ou o tradutor era melhor do que ele, ou o cara realmente sabe escrever boa prosa, e como fã do autor que já leu muitos livros dele, eu nunca tinha encontrado um texto tão refinado e bem trabalhado como em A Espera de Um Milagre. É literatura com L maiúsculo. Mas, não vou falar muito porque já fiz uma resenha e com certeza grande maioria do planeta já conhece muito bem a história.


E fica aqui uma menção honrosa para 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Arthur C. Clarke, que me fez sofrer por saber que minha geração nunca vai pisar em outro planeta, muito menos outra galáxia; Entre Quatro Paredes, de Jean-Paul Sartre, que foi a primeira obra literária do autor que li e me deixou atônito; A Paixão Do Socialismo – De Vagões E Vagabundo, de Jack London, que me deixou pobre, porque me fez comprar uns dez livros do cara e já já vou fazer uma resenha sobre o livro; e finalmente a obra de ensaios Como Morrem Os Pobres, de George Orwell, que na minha opinião mostra o verdadeiro talento do cara, que era melhor ensaísta que romancista.


E, por fim, os não tão bons de 2014:


01-  Doutor Sono – Stephen King
Em primeiro lugar, preciso dizer, que gostei do livro sim, só que para ser a continuação da GRANDE obra do King eu esperava mais, ou seja, o que me desanimou no livro foi, como sempre, as minhas próprias expectativas. Em todo caso, já fiz resenha, e comentei que a mudança drástica na estrutura narrativa é o ponto forte na medida em que reflete os gostos do leitor de hoje, mas, por outro lado, destoa com qualquer expectativa que eu tinha.


02-  A Festa Da Insignificância – Milan Kundera
Então, motivos para os quais eu não gostei de um livro do Kundera, o que foi uma surpresa terrível para mim: primeiro, eu me senti burro lendo, porque tenho certeza que deixei escapar todas as nuances de subentendidos que fizeram o livro ser classificado como um dos melhores do ano pela crítica no Brasil; segundo, seja lá o digam, não é o autor de A Insustentável Leveza do Ser. Ele arriscou algo totalmente novo, o que foi chato, porque cada romance do Kundera é novo, mesmo sendo sempre ele. Nesse caso, faltou a profundidade, a leveza e a beleza que eu gosto tanto. Apesar que, como leitor de sua teoria, eu encontrei todos os elementos que o autor aprecia na obra. Mas não gostei!


03-  Amalgama – Rubem Fonseca
Outro dos meus autores favoritos, Rubem Fonseca é provavelmente o escritor brasileiro que eu mais curto e é o único autor que eu tenho a bibliografia completa, e apesar de não ter gostado nada dos seus últimos três livros, eu provavelmente vou continuar comprando os futuros na esperança de que ele volte a ser o que era. Porque se continuar assim, é melhor se aposentar.


04-  O Príncipe Da Névoa – Carlos Ruiz Zafón

Eu pensei que ia ter um eterno caso de amor com o Zafón, aí eu li esse livro. Vale ressaltar que não é ruim, mas é o primeiro livro dele, foi escrito para um público mais novo que o público de A Sombra do Vento e muito tempo antes. Logo, isso faz a gente perdoar a ausência daquilo que encanta na obra dele, aquela sensação de estar lendo um livro revelador. Mas como entretenimento é até aceitável. 

E é isso! A postagem ficou um pouco longa, mas 365 dias é um tempo bem longo, mesmo para quem leu pouco como eu, logo, foi uma medida proporcional. E agora, que venha 2015 com livros ainda melhores! \o

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Os fantasmas de Stephen King – Resenha de Doutor Sono




Quando Stephen King anunciou que estava escrevendo uma continuação para seu clássico O Iluminado, muita gente (principalmente os fãs do bom e velho Kubrick) já foram torcendo o nariz. Não que a ideia de reencontrar e descobrir o que aconteceu com o menino Danny Torrance não tenha deixado todo mundo muito animado, mas, como o próprio King admite no epílogo do livro, um remake, uma continuação, ou seja o que for, de um clássico, é sempre um desafio – e quase sempre um resultado infeliz. Assim, Doutor Sono (Suma de Letras, 2014), é apresentado pelo próprio autor como um “exorcismo” do personagem que nunca abandonou sua mente (e a dos leitores, aparentemente). E assim, King traz seu personagem da década de 70 até os dias de hoje.  
A história começa com os acontecimentos subsequentes ao primeiro livro, contando que fim tiveram os personagens sobreviventes (e alguns fantasmas também). Mas o fato é que os fantasmas tão assustadores de O Iluminado não estão no plano principal dessa sequência. Outro tipo de terror está destinado a se chocar com o pobre Danny. Mas já chegamos lá. O livro vai narrando a vida do garoto ao longo das décadas subsequentes, como ele perdeu a mãe, se envolveu com bebida, e, em suma, de que forma o anjinho do hotel Overlook se tornou uma pessoa ruim. O que acaba transformando a narrativa em uma história de redenção, quando Danny chega em uma nova cidade, pequena, e decide mudar de vida, conseguindo trabalho em um asilo. É nesse asilo que ele ganha a alcunha sinistra de Doutor Sono, pois embora seja apenas um enfermeiro, seu dom psíquico lhe permite “facilitar” o momento da morte dos pacientes, motivo pelo qual ele ganha algum respeito.
Capa do livro
E assim os anos se passam, até que uma garota, Abra Stone, entra em sua vida. E trata-se de, nada mais nada menos, uma versão super poderosa em miniatura do próprio Danny (tão poderosa que ela tem seu primeiro contato psíquico com Danny aos três meses de idade), e assim como o protagonista do primeiro livro, ela logo chama a atenção das criaturas das trevas: o Verdadeiro Nó. Uma seita de criaturas que podem viver para sempre se alimentando de crianças com “iluminação”. E conforme o Verdadeiro Nó se volta contra Abra, ela procura ajuda em Danny, que se tornará seu mentor e melhor amigo na luta eminente que se aproxima.
King mostra novamente seu poder fantástico de criar personagens nesse livro, pois todos eles (inclusive os vilões) são extremamente cativantes, sendo que provavelmente essa característica seja o ponto forte do livro. É impossível não querer saber como a história termina e ler suas 500 páginas em três dias. Mas um ponto me chamou bastante a atenção: a mudança total na natureza da história.

Para quem leu (ou assistiu) O Iluminado, nos é apresentada uma família com problemas estruturais e financeiros, e uma cena de total isolamento, na qual os três (quatro com o cozinheiro) ficam presos em um hotel isolado contra os fantasmas que na época eram o auge do assustador. Mas hoje em dia, se pensarmos em termos de mercado, o que está na moda é o extremo oposto, ou seja, as histórias de equipes (vide Os Vingadores) e as tramas com muitos personagens (bate aqui tio Martim), e para falar a verdade, séries como Supernatural tornaram os fantasmas bem menos assustadores. E o resultado é a reformulação total de Doutor Sono em detrimento da primeira história. Nós temos dois protagonistas, com muitos “amigos” para ajudar, e um grupo de vilões que não deixam de ser simpáticos. Não sei se só eu achei isso, mas essa “atualização” da história me pareceu muito significativa, e até legal, se pensarmos que estamos acompanhando o desenvolvimento das narrativas fantásticas e de terror. Em todo caso, a história é envolvente e te convence, mesmo sem dar medo. É uma boa leitura, como praticamente tudo que o Stephen King escreve, e os fantasmas de Stephen King são agora, mais do que nunca, pops. 

Stephen King

quarta-feira, 9 de julho de 2014

O Que Woody Allen E A Literatura Russa Têm Em Comum?

 
Woody Allen

A primeira coisa que alguns leitores podem estranhar é a relação entre uma personalidade do cinema com um blog de literatura. E embora exista uma discussão bem antiga e reconhecida sobre a proximidade entre as duas artes (cinema e literatura), com estudos e teses bem interessantes (inclusive a que estamos prestes a lançar, rs), no caso do cineasta americano essa relação é bem mais próxima. Escritor por vocação, Allen começou sua carreira como roteirista, a qual continua até hoje, muito mais reconhecida, claro, e, além de suas contribuições escritas para o cinema, também conta com vários livros publicados, entre contos, crônicas e até peças para o teatro. Assim, nem dá para pensar muito longe das belas letras a obra do comediante mais trágico dos EUA. Entretanto, e é aqui que começamos nossa análise, existe mais em comum entre Woody Allen e Dostoiévski, que entre o cineasta e Ingmar Bergman, que é um dos diretores mais apreciados por Allen.
Antes de continuar, contudo, devo confessar que este que vos fala é um tremendo fã desse judeu neurótico, e talvez eu acabe dando as observações que eu faça algum valor demasiado, mas vamos lá.
Em 2011, Woody Allen em um documentário sobre sua vida falou sobre certas influências literárias, em destaque especial para a literatura russa, o que eu já havia constatado. Afinal, quem não sentiu um deja vu em Mach Point (2005) quando dezenas de alusões diretas e indiretas à Crime e Castigo começaram a saltar da tela? A ideia do crime enquanto clímax máximo da narrativa, e as complicações ideológicas já haviam sido inclusive abordadas em outros filmes do diretor. 
Um deles foi o filme Crimes e Pecados, de 1989, com uma problemática muito parecida com a do filme de 2005, mas uma abordagem muito mais psicológica, quase freudiana. O interessante é que, diferente do grande autor russo, o cineasta parece bem menos esperançoso na consciência e na redenção humana. É quase uma confissão de desilusão, repleto de uma insatisfação existencial que beira o vazio. Outra referência pode ser encontrada no filme O Sonho de Cassandra, de 2007,  com uma trama em torno de dois irmãos muito diferentes que se envolvem em um conflito com desenlace trágico, bem ao estilo Irmãos Karamazov.
Entretanto é em outro clássico, A Última Noite De Boris Grushenko, ou apenas Love And Death, no original em inglês, que a relação com a literatura fica mais evidente. Comédia com um alto teor pastelonico ainda da primeira fase do diretor, do ano de 1975, o filme é uma sátira dos romances russos do século XIX. Ambientado em uma Rússia muito parecida com a de Tolstói em Guerra e Paz, o filme trata de todos os componentes filosóficos dos escritores russos, como o sentido da vida e sua ausência de valor, o significado de Deus, a relação com a morte, a verdadeira natureza do amor, etc., e isso sem perder a piada. O filme ainda faz vários trocadilhos com os romances mais importantes da literatura russa, e algumas alusões discretas.

Cena de Love and Death

Dito tudo isso, entretanto, ainda falta ressaltar aqui o caráter mais literário e mais russo dos filmes de Woody Allen. Um dos maiores escritores russos, chamado de pai do conto moderno, Anton Tchekhov, foi responsável por desenvolver uma técnica narrativa que girava em torno da ausência de um começo e de um final para as tramas. Basicamente o escritor acreditava que os personagens deveriam ser apresentados pela própria narrativa ao longo do desenlace dos acontecimentos, sem que fosse explicado piamente todos os pormenores do contexto e de cada personagem. Da mesma forma, sua ideia era, a grosso modo, deslocar o final para antes ou depois do ponto culminante da trama. Assim, onde um escritor comum terminaria seu conto, Tchekhov continuaria por mais tempo a história, ou a interromperia antes. Isso para dar a trama um ar mais natural, mais próximo da realidade, que é fluida e não polida para o palco.
Anton Tchekhov
De volta ao nosso tema principal, Allen adota abertamente essa técnica. Quem está acostumado a assistir seus filmes deve já ter se perguntado mais de uma vez: “Mas termina aí?” (vide Blue Jasmine). Campeão em interromper a história no clímax, filmes como A Rosa Purpura do Cairo, o clássico Manhattan e Anne Hall seguem essa estrutura, deixando no ar o possível final e promovendo uma verdadeira quebra de expectativa no publico. Por outro lado, ele também não oferece explicações para todos os acontecimentos, ou alguém consegue explicar como o protagonista de Meia-Noite em Paris viaja no tempo? O que também é um traço de Tchekhov, que era contra o excesso de explicações em uma trama.

No documentário Woody Allen de 2011, o cineasta citou vários escritores que o influenciaram, inclusive Tchekhov, Dostoievski e Tolstói. Claro, as relações de estrutura aqui propostos podem ser – ainda que seja improvável – coincidência, mas não seria de se estranhar que um dos maiores diretores e escritores modernos se utilize justamente da técnica de um dos maiores escritores do passado. E se você não leu esses caras e não viu os filmes do Allen, acredite, você não sabe o que é viver. Rs. Em todo caso, assim como os grandes escritores aqui sitados, Allen é um profundo observador e analista de seu tempo, e seus filmes são um retrato da psicologia do homem moderno. 



Melhor filme de Woody Allen na minha opinião